Pe. Ivanir Antonio Rampon

Quem de nós já não sofreu algum tipo de violência? A violência, geralmente, deixa uma ferida difícil de cicatrizar. E quem não sentiu vontade de se vingar? Quem já não fez alguma violência física, verbal, psicológica, moral, social ou econômica? Além dos conflitos pessoais, há feridas de guerras entre povos, etnias, religiões que precisam de cura e novo encontro. No mundo há violência, vingança e feridas por demais! O que precisamos é de artesões de paz que, com criatividade e ousadia, façam processos de cura e novos encontros. É sobre isto que trata o capítulo VII da Encíclica Fratelli Tutti. Como cicatrizar as feridas? Como fazer novos encontros?

1- Recomeçar a partir da verdade: Fazer um “novo encontro” não significa voltar na condição anterior à violência, fingindo que nada aconteceu – até porque todos mudamos. No entanto, importante é manter a “memória penitencial”, capaz de assumir o passado para libertar o futuro. Só a verdade histórica dos fatos permitirá uma nova síntese para o bem de todos. Sem ela, não será honrada a memória das vítimas. De fato, a verdade é companheira inseparável da justiça e da misericórdia. As três juntas são essências para construir a paz. A verdade não deve levar à vingança, mas à reconciliação e ao perdão.

2- Arquitetura e artesanato da paz: Para estabelecer a paz entre pessoas e povos existe uma arquitetura da paz, ou seja, instituições que promovem processos de paz e acordos institucionais e econômicos. Mas esta arquitetura não substitui o artesanato, a saber, cada pessoa e cada povo que opta pela paz dando primazia à razão sobre a vingança. As comunidades também são importantes para ajudar artesanalmente nos processos de paz. Nunca estará terminada a construção da paz. É uma tarefa que não dá tréguas. Entendemos que manifestações públicas violentas não ajudam a encontrar vias de saída e geralmente escondem manipulação política e apropriações a favor de interesses particulares. Por isso, persistimos na busca de uma cultura do encontro que coloca no centro de toda a ação social, política e econômica a pessoa humana e o respeito ao bem comum.

3- Sobretudo com os últimos: A promoção da amizade social exige um renovado encontro com os setores mais pobres e vulneráveis pois a paz não é somente ausência de guerra, mas empenho – especialmente daqueles que ocupamos cargos de maior responsabilidade – em reconhecer, garantir e reconstruir a dignidade dos pobres a fim de que possam ser protagonistas do destino da nação. Muitas vezes, os últimos da sociedade foram ofendidos com generalizações injustas, desprezos e falta de inclusão social. A proximidade nos faz amigos e nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e o seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres. Quem quiser trabalhar pela paz não pode esquecer que a desigualdade social e a falta de desenvolvimento integral impedem que se gere a paz. Por isso, importa começar a partir dos últimos.

4- Valor do perdão: Há quem prefere não falar de reconciliação pois entende que o conflito, a violência e as rupturas fazem parte do funcionamento normal da sociedade. Outros defendem que dar lugar ao perdão equivale a ceder espaço próprio para que outros dominem. Por isso, precisamos explicitar o que entendemos por reconciliação e perdão – temas de grande relevo para o cristianismo e, com várias modalidades, em outras religiões. Jesus nunca fomentou a violência e a intolerância. Ao contrário, exigiu que seus discípulos não oprimissem – “entre vocês não deve ser assim” – (Mt 20,25s), que perdoassem “até setenta vezes sete” (Mt 18,22) e que suportassem o conflito inevitável por causa da opção pelo Reino de Deus (Mt 10,34ss) pois a paz não é inércia que esconde injustiças. Diante dos inevitáveis conflitos sociais, os cristãos devem tomar posição decidida e coerente com o Evangelho do Reino de Deus.

5- Lutas legítimas e o perdão: Não se propõem um perdão renunciando os próprios direitos diante de um poderoso corrupto, um criminoso ou alguém que degrada a nossa humanidade. Somos chamados a amar a todos – sem exceção – mas o amor ao opressor não significa consentir que ele continue como tal. Amá-lo é tentar que ele deixe de oprimir. É também lutar para que ele não mais lese outras pessoas. O perdão não é omissão, é luta contra a injustiça e a favor da justiça, porém sem alimentar o ódio pois este faz mal “à alma das pessoas e à alma do povo”. Ninguém alcança paz interior disseminando ódio e desencadeando vinganças.

6- Memória: Nunca se deve propor o esquecimento da malvadez humana, atiçada por falsas ideologias, que esquece a dignidade de cada pessoa. Não se pode esquecer da Shoah, de Hiroxima e Nagasáqui, do comércio de escravos e dos massacres étnicos. É fácil cair na tentação de dizer que “isto é passado” e que está “na hora de virar a página”. Porém, sem memória não se avança. Precisamos testemunhar às sucessivas gerações o horror do que aconteceu e a grandeza dos gestos de solidariedade, de perdão e fraternidade. O perdão não implica esquecimento. O perdão livre e sincero reflete a imensidão do perdão divino: se é gratuito pode até perdoar quem resiste ao arrependimento e é incapaz de pedir perdão. Quem perdoa não esquece, mas renuncia a deixar-se dominar pela força destruidora que o lesou.

7- Por que ainda há guerras? O Papa entende que a guerra é uma ameaça constante – e estamos em plena “guerra mundial em pedaços”. Porém, devemos proclamar: “Nunca mais a guerra!”. Atualmente, é difícil sustentar a teoria “da guerra justa”. Toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. Não fiquemos em discussões teóricas, mas tomemos contato com as feridas, toquemos a carne de quem paga os danos, interroguemos as vítimas… Do “coração da guerra” não nos turvará o fato de nos tratarem por ingênuos porque escolhemos a paz. Queremos que o dinheiro usado em armas e outras despesas militares seja investido num Fundo mundial para acabar com a fome nos países mais pobres. E assim, acolher o anúncio do profeta: “transformarão as suas espadas em arados” (Is 2,4).

8- A pena de morte: O Papa Francisco finaliza o capítulo VII dizendo que a pena de morte é inadmissível e que a Igreja se compromete em propor a abolição de tal pena em todo o mundo. Hoje, setores de meios da comunicação e da política incitam a violência e a vingança contra os que cometeram delitos. Há cristãos que se sentem tentados a ceder às vinganças. No entanto, Jesus pediu para “colocar a espada na bainha”. Esta reação, que brotou do coração de Jesus, quando Ele estava sendo violentado, chega até hoje como um apelo incessante.

Pe. Ivanir Antonio Rampon

Presbítero da Arquidiocese de Passo Fundo. Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo (1996), graduação em Teologia pela Itepa Faculdades (2000), mestrado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (2004), doutorado em Teologia Espiritual pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (2011), com tese sobre O CAMINHO ESPIRITUAL DE DOM HELDER CAMARA (publicada pelas Paulinas, 2013). Atualmente é professor de Fundamentos de Espiritualidade, Teologia da Espiritualidade, Teologia da Graça, Produção Textual, História da Espiritualidade, Vultos da Espiritualidade – Dom Helder Camara, na Itepa Faculdades. É coordenador da Pós-Graduação em Espiritualidade na Itepa Faculdades. Assessora cursos na área de Teologia e Espiritualidade.

Imagem por G. Conti – Accascina, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2899747

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