Desejando escrever algumas palavras sobre a vocação ao ministério ordenado, por ocasião da comemoração do Dia do Padre, comecei a me perguntar sobre o que poderia ser interessante dizer neste tempo em que vivemos, um tempo de pandemia, com seus diversos desdobramentos. Assim como todas as demais vocações específicas, a vocação do padre passa também por um processo de adaptação e, porque não dizer, de crise em relação ao sentido das coisas e ao cotidiano da vida. Como ser e permanecer padre em um tempo único como este? É o que muitos padres honestamente se perguntam.
Seriam muitas as possibilidades de resposta. Poderíamos refletir sobre a vida e a missão do padre; poderíamos aprofundar a sua trajetória vocacional, resgatando a experiência do chamado “primeiro amor” (momento do chamado vocacional); poderíamos percorrer os diversos processos de formação e de discernimento, até chegar ao momento sagrado da Ordenação Presbiteral e seu consequente ingresso no campo missionário. Tudo isso teria grande valor, mas o momento presente lança outra interrogação que, a meu ver, é mais profunda e atinge o cerne da vocação presbiteral. Como sugere o título acima, a pergunta mais importante hoje é: “o que sustenta um padre de pé?”.
Não pretendo ter a única nem a última palavra para responder tão importante questionamento. Minha intenção é compartilhar o fruto do discernimento que eu mesmo me vejo na obrigação de fazer sobre a minha condição de Presbítero (embora também Diácono e Bispo que sou), igualmente confrontado pela experiência dos longos dias de afastamento social e de forçada reclusão.
Não estava previsto em nossa agenda pastoral para 2020 que todos teríamos que suspender tantas atividades e enfrentar o questionamento sobre a essencialidade da vida. O fato é que a vida é muito mais real do que nossas ideias e nossos planejamentos. Portanto, se a vida está nos interpelando, não percamos a oportunidade de responder.
Para mim é uma decisiva fonte de inspiração, em se tratando de pensar a vocação que assumi, a parábola do tesouro escondido no campo, de Mateus 13,44. Mesmo tratando mais amplamente da descoberta do Reino, esta parábola se presta muito bem para entender o processo e o sentido último de uma vocação. O tesouro já está ali, escondido, e se oferece como dom. Quem o encontra, logo o identifica com algo de valor absoluto, a ponto de protegê-lo enquanto vende tudo o que tem para adquirir o terreno e ficar com o que ele esconde. Chama a atenção o ânimo do homem de sorte que, “cheio de alegria”, se despoja de todos os seus bens anteriores.
O que importa mesmo é o tesouro encontrado. Nele está a razão para viver e o critério para avaliar o valor relativo de todas as outras coisas. Seja qual for a vocação, esse tesouro é o encontro pessoal com Jesus Cristo, base de tudo o que virá depois. Assim, a vocação vale pelo que se encontrou, não pelo que se perdeu. Quem seria louco em centrar a sua vida nas renúncias? Elas, as renúncias, nunca conseguirão satisfazer a sede de sentido da vida. Elas são a consequência da vocação, não a causa. Infelizmente, muitas vezes nossa vocação é entendida mais pelo grau de sacrifício que exige do que pelo grau da alegria que gera no coração. Pobre do padre, e pobre de todo e qualquer vocacionado, que passa a vida lamentando ao que teve que renunciar, perdendo assim o tempo precioso de contemplar o tesouro encontrado.
Em tempos de pandemia, de nós padres, nos foi tirada toda falsa segurança. A agenda que mandava em nossos horários está fechada, as reuniões e encontros com muitas pessoas estão adiados, a administração dos sacramentos (incluindo o da Eucaristia) estão reduzidos, o carro da paróquia tem permanecido mais na garagem do que percorrido estradas. Por outro lado, vimos ampliado o tempo de que dispomos para estar conosco mesmos e com Deus, nos vemos bastante tempo sós, na presença d’Ele, coisa que sempre havíamos desejado, mas que talvez não estivéssemos preparados para experimentar. O fato é que agora sobrevive somente o essencial e o essencial tem pouco a ver com agendas, reuniões e viagens. Estamos tendo uma grande chance de renovação, em meio, é claro, a muito sofrimento pessoal e alheio. De repente descobrimos que o pastoreio mais difícil é o pastoreio de nós mesmos, é pastorear-nos dando orientações à própria vida, dando conselhos a nós mesmos sobre a disciplina diária e sobre as escolhas a fazer. No entanto, ser pastor de si mesmo é uma grande conquista, é uma graça divina.
Uma vez encontrado o tesouro como valor absoluto, tudo o mais tem seu valor diminuído e relativizado. No caso do padre, nenhum bem material, nenhum afeto humano, nenhum prestígio, nem mesmo um suposto sucesso pastoral importará mais do que a certeza de ter encontrado um tesouro e a graça de ter permanecido com ele.
O tesouro encontrado é Jesus Cristo, razão e fundamento da vocação. Uma vez assumida a vocação com fidelidade, sem divisões, é operada em nós uma transformação ontológica. Algo de essencial muda. Assim, o padre vale pelo que é e não pelo que faz. Primeiramente somos presbíteros e, só depois, em decorrência disso, vem o que fazemos como presbíteros.
Caros presbíteros da querida Diocese de Vacaria, contando com a eficaz intercessão de Nossa Senhora da Oliveira, Mãe de todos os ministros ordenados, rendamos graças a Deus neste dia do padre. Agradeçamos a Ele pela experiência da “solidão acompanhada” que nos conduz ao essencial e sustenta a todos de pé.
Feliz e abençoado dia do padre!
<em>Dom Sílvio Guterres Dutra</em>
<a href=”https://www.diocesevacaria.com.br/diocese/clero/dom-silvio-guterres-dutra/”>Dom Sílvio Guterres Dutra</a> é bispo Diocesano de Vacaria. É formado em Filosofia (1986-1988) junto a FAFIMC (Faculdade de Filosofia Imaculada Conceição), em Teologia (1989-1993) junto ao CETJOV (Centro de Estudos Teológicos João Vianney) e mestre em Teologia Pastoral (1999-2001) pela Universidade Lateranense.